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domingo, 1 de maio de 2011

Tu és Fotógrafo ?



É interessante como nos deparamos com situações embaraçosas, cujas conseqüências nos remetem a reflexões sobre como lidamos com nossas próprias dificuldades. Falo da tendência que temos de julgar as pessoas a partir de suas posses, seus títulos e rótulos sociais, ignorando aquilo que representam ou as coisas das quais são capazes de realizar sem que para isso tenham feito uma “faculdade” oficial. Outro dia fui até Abaetetuba visitar uma grande amiga, professora Marília Pontes.  Abaetetuba ou simplesmente Abaeté, sempre me trouxe boas recordações, então sempre que posso, dou uma passada por lá a fim de refrescar a mente nas águas geladas de seus inúmeros igarapés e saborear o típico pãozinho baguete.
Não faz muito tempo as bicicletas eram o principal meio de locomoção da população. Hoje com o aumento de veículos automotores, as bicicletas foram substituídas por uma descontrolável frota de motocicletas, onde a coisa mais difícil é ver algum piloto com capacete ou obedecer às faixas de trânsito. Contudo, o que mais chama a atenção neste cenário caótico é assistir alguns irresponsáveis cidadãos conduzir, sob duas rodas, toda a família, um verdadeiro exercício de contorcionismo, falo de cinco e até seis pessoas.  
Não se trata de um fenômeno exclusivo de minha hospitaleira Abaeté; certamente muitas outras cidades do interior devem ter incorporado em sua pacata rotina, semelhante drama na ordem social. Contudo, o que me levou a escrever estas linhas foi outro fato, o qual  envolve um viajante curioso, três apaixonados torcedores de futebol e um nobre comerciante.
Pois bem, era manhã de sábado e as horas já se avançavam quando resolvi entrar num estabelecimento comercial tão rústico que mas parecia as extintas mercearia portuguesas dos anos 70. O ambiente úmido e com iluminação precária, combinava com as altas paredes de pintura desbotada e descascada (tema interessante sobre textura e contraste de cor em fotografia), a qual exibia numerosas prateleiras de madeira, repletas de mantimentos e bugingangas das mais variadas, desde carne seca, passando por alimentos enlatados, velas, sabão até combustível para embarcações, tudo ali, exposto sem muito critério na distribuição.
Lentamente e com minha câmera em punho, me aproximei do balcão em busca de um cenário que pudesse representar a “antiga Abaeté”. Já a poucos metros da entrada, uma mesa com cinco garrafas de cerveja, dois copos e dois distintos cavalheiros, ambos aparentando uns cinqüenta e poucos anos, conversavam animadamente. Ao fundo uma eletrola tocava clássicos do Reginaldo Rossi. A julgar pelas aparências, tratava-se de dois compadres pescadores, provavelmente, ribeirinhos fazendo hora para voltar a seus lares após descarregamento do pescado na cidade.
O assunto entre os dois era a escalação do "Re-Pa" - para quem não sabe, RePa significa em terras paraoara o duelo entre os dois mais populares times de futebol, o Remo e o Paysandu. Após alguns segundos olhando fixamente para aquela cena, fui interrompido pelo vendedor atrás do balcão:  - Olá, o senhor é fotógrafo? - Sim, mas não trabalho nesta área - respondi de pronto. Em seguida o solicito vendedor rebateu: - Então é apenas uma diversão sua? Eu já fui fotógrafo profissional antes de abrir a merciaria e sacou uma leica de fabricação alemã.
Aquela altura do campeonato nada mais me distraia alpem da conversa com o seu Isaísas, dono da merciaria. Meus pensamentos agradeciam a Deus por ele não ter sacado no lugar de uma mística câmera fotográfica, um três-oitão ou coisa parecida, sei lá, vai que! A partir de então, seu Isaías mudou sua expressão fechada e começou a falar sobre seu passado como fotógrafo.  Contou-me de forma ligeira que sempre foi apaixonado pelo oficio e aquela “pretinha” (a câmera Leica que segurava), nunca o tinha deixado na mão. Seus olhos não negavam o orgulho e a paixão que tinha pela câmera que, segundo ele, ainda funcionava perfeitamente.
Nossa conversa se prolongou por alguns minutos, ocasião em que mostrei minha câmera, comentando sobre seu desempenho e funções e, vice versa. Daí em diante seu Isaías fez a maior das revelações dizendo: “Sérgio, aprendi todos os segredos dessa arte sozinho, sem ajuda de ninguém, tudo por conta própria. Antigamente fotografia era um negócio muito fechado, quem sabia, sabia e não passava pra ninguém, principalmente aqui no interior, onde tudo era mais difícil. Aos poucos fui comprando os reagentes, os filmes, fui experimentando, errando, corrigindo, testando e as oportunidades de eventos sociais como aniversários, casamentos, foram surgindo até que me dei conta, 30 anos havia passado. Hoje, tudo isso que estais vendo aqui – apontou para o estabelecimento - foi conseguido com a ajuda dessa “pretinha”. Com ela consegui criar meus cinco filhos e ainda dei uma casinha para cada um morar, então cumpri com minha obrigação de pai.”   
Naquele instante um jovem vestido com a camisa bicolor invade o recinto dirigindo-se aos dois senhores e já brandindo em alto e bom tom: “Vocês por acaso são técnicos ou já jogaram em algum time para falarem assim do time?” Aquela foi a oportunidade para eu fotografar o ambiente e logo me despedir de meu ilustre prosador, saindo de fininho.
Já no caminho de volta a casa da Marilia, fiquei me perguntando: Para alguém falar ou praticar fotografia com conhecimento de causa, é realmente necessário ser um fotógrafo profissional? Para alguém falar com propriedade sobre futebol ou outro esporte qualquer, é realmente preciso ser jogador ou técnico? Para alguém dirigir automóvel é necessário além da CNH ter  um certificado de motorista profissional ou ser mecânico ou mestre em motores a explosão? Deixo aqui estes questionamentos para que cada qual encontre sua própria resposta mediante reflexão sincera de livre de preconceitos. Para tanto, não podemos desconsiderar o fato de que, diferentemente de certas profissões, a exemplo da Medicina ou Direito (refiro-me a estas duas apenas por se tratar de atividades tradicionais e bem estabelecidas), existem outras profissões igualmente nobres, complexas e tradicionais que não requerem o formalismo acadêmico para serem bem praticadas, bastando para isso, a dose certa de interesse, amor e dedicação a exemplo de seu Isaías, que se transformou num profissional por conta e iniciativa própria, semelhante a muitos outros grandes fotógrafos que esbanjam simplicidade e coragem.
Neste sentido, apesar de não me considerar um profissional em fotografia, continuarei dando dicas sem a intenção de ofender ou desprestigiar os profissionais. 

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