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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Anatomia tão Humana

Ainda no primeiro ano de Medicina, lá estava eu enfiado no laboratório de anatomia da UFPA como de práxis. Pelas janelas do laboratório a luz suave do fim da tarde iluminava o ambiente contrastando com a fraca luz artificial das iluminarias. Entre o folhear das páginas do “Sobotta” (tradicional atlas de Anatomia humana), as horas passavam em meio aquele mórbido silêncio. Deitado em decúbito dorsal sobre a mesa de dissecção, um gélido compatriota expunha todo o esplendor de seus órgãos à prospecção do estudo. Sim, naquele instante, flertava com um ser humano falecido e que havia emprestado seu corpo para estudos de anatomia. Vem isto a dizer que não se tratava de um cadáver, posto que este termo vem do Latim carna data vermis, que significa “carne dada aos vermes”, e obviamente que num laboratório de anatomia, isto não estaria acontecendo.
Entre a manipulação de um órgão e outro, pus-me a refletir sobre o significado daquele ato. Fiquei imaginando quantas coisas bonitas aqueles olhos teriam contemplado? Que ofício teria praticado aquelas mãos? Por certo, estava diante não apenas de um amontoado de tecidos e órgãos, mas sobretudo, de um ser humano que em vida, certamente sorriu, chorou e amou.
De repente minhas elucubrações foram interrompidas por uma voz grave que lenta e pausadamente começou a falar: “caro amigo de muitas horas, não tive as mesmas oportunidades que tivestes. Fui um indigente na vida, discriminado, odiado, esquecido e abandonado. Por toda a minha vida esperei um ato de carinho e acolhida, mas nunca os encontrei.” E assim continuava quela voz...
“ - Ao morrer, permaneci algum tempo num freezer a espera de reconhecimento e gratidão, seja de meus familiares ou conhecidos, mas infelizmente isto nunca aconteceu. Jamais tive um funeral, por mais simples que fosse.
Por sorte fui acolhido por esta honrosa Universidade que me deu guarida permanente em companhia de mentes brilhantes e sedentas de conhecimento.
Nunca havia entrado numa Universidade em vida como vim a fazer no post mortem. Desta forma, sinto-me gratificado em ver o brilho nos olhos daqueles que aqui adentram a manusear-me na esperança de salvar vidas. Não obstante, quão poucos dentre vós se compraz a refletir sobre o significado de seus “instrumentos de estudo”.
Não raro, sou tratado com profunda indiferença, vitima de brincadeiras jocosas e humilhantes que me entristecem e me envergonham. Que insensatez atroz!
Por fim queria apenas agradecer a oportunidade de ajudar e colaborar. Sou grato principalmente àqueles que me respeitam enquanto ser humano. Sim, porque é isso que fui, é isso que eu sou e é isso que continuarei a ser enquanto existir algo em mim, que seja útil a vós“
Naturalmente que tudo não passou de uma cáustica imaginação, motivada pela “dor de consciência” e inspirada nos escritos de Michel Palheta, o qual também tem manifestado igual preocupação ante a referida questão. Isso indica-nos que a falta de sensibilidade da comunidade acadêmica em geral, não faz parte apenas de eventos circunstanciais, mas correspondem a fatos estruturais, presentes em muitas instituições de ensino superior com áreas de saúde.
Não podemos nem devemos permitir que pela nossa indiferença sejamos levados a praticar a trivialidade de um estudo destituído de reflexão e compaixão. Do contrário, converteremos o logro de nosso aprendizado em objeto de ação discriminatória e fugaz. Daí porque gostaria de ver pautado nesta questão, a adesão de todos aqueles que se dedicam ao estudo de anatomia.
Em passant, imprescindível se torna, pois, que, antes de nos arvoremos no alto de nossa sapiência, façamos uma reflexão sincera sobre a ética profissional de nossos atos. Sejamos mais humildes e mais humanos, respeitando à memória dos que já se foram. Estes mais do que nunca, se dignificam ao prestarem relevantes serviços à sociedade ensinando-nos sobre nós mesmos.
Infelizmente ainda vivemos sob o prisma de que devem ser tratados igualmente os iguais, e desigualmente os desiguais, na exata medida de suas desigualdades, e isto a mim parece o reflexo exato da irascível anatomia tão humana do orgulho e da vaidade. Contudo, são merecedores de encômios todos aqueles que se lançam com o coração sincero, com amor, com respeito e dedicação, ao estudo do corpo humano, cujos segredos a natureza tão generosamente nos prodigalizou.

                                               (O Liberal, 11-12-02)

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