Diário de um viajante de sorte.
Capítulo 42.
*
Algumas coisas são
absolutamente imunes as mudanças dos tempos e do espaço geográfico,
permanecendo as mesmas.
Andei por esse caminho
diversas vezes. O trecho que outrora ligava dois ambientes, hoje ligou dois
mundos: o meu presente com o meu passado.
Dia desses percorri-o
demorando mais do que o de costume, pois cada passo carregava consigo o peso de
muitas recordações e a sensação de viajar de volta para quando tudo começou.
E em pensar que a maioria daqueles
transeuntes que hoje vi passar nem eram nascidos ou estavam se alfabetizando
quando nós, graduandos de Biologia por ali passamos.
Por aquela saudosa ponte de
ferro no Campus da UFPA vi novamente passos apressados, cheios de orgulho e
autoconfiança exatamente igual a 1996, mas também, fez-me lembrar que já estive
em dois mundos. Sim, a ponte já me conduziu à dois mundos em tempos distintos
Tal qual Gulliver1, eu também poderia
dizer que já estive em Lilliput2
e foram anos incríveis, muito produtivo, repleto de aventuras e desejos
concretizados. Após essa fase áurea fui parar em Brobdingnag3 e ali permaneci por seis longos anos, foi
quando finalmente encarei-me no espelho.
Foram tempos difíceis que me
fizeram rever muitos conceitos e pontos de vista. Não há nada melhor como poder
visitar o inferno, assim, só de passagem, e retornar para os planos mais
tranquilos da mente, de forma renovada, enxergando o mundo com outros olhos.
Certamente aqueles foram anos de intensa experiência, sobretudo, aprendizados
sobre mim mesmo.
Esse contraste entre os dois
mundos, deixou marcas, a maioria muito boas, outras nem tanto. Sobrevivi, saí
com a mochila carregada de itens desejáveis e escassos nos dias atuais, mas, o
peso daquelas duras lições durante o convívio com os gigantes, deixaram algumas
cicatrizes, desarrumaram o taciturno arranjo de soberba, prepotência e
arrogância que compunha o cimento de minha personalidade, encrencas
psicológicas que ainda hoje venho caminhando no sentido de resolvê-las de forma
lenta e gradual, tal foi a força daquelas experiências, um presente de Deus
nesta vida.
A minha viagem continua, estou
prestes a cruzar outra fronteira, uma nova fase na vida que irá requerer uma
mochila mais pesada de virtudes e acertos, itens indispensáveis para subsidiar
minha historia, com atos coerentes às minhas palavras e, assim, possam ser
uteis no processo de criação e educação de minha futura descendente.
Tomando como base a referida
fábula anedótica a qual serve de pano de fundo para expressar o contexto de meu
processo de formação profissional e de reforma íntima, posso afirma que nunca
mais me deparei com cidades miniaturas. Hoje em dia as cidades que visito são
habitadas predominantemente por gigantes e, quando muito, encontro aqui e acolá
alguém da minha altura e então, regozijo-me com a construção da nova amizade e
da possibilidade da parceria ao longo da caminhada.
______________________
(*) Texto produzido para uma atividade do curso de especialização em preceptoria no SUS do Hospital Sírio Libanês.
1-
Guiliver: Personagem fictício de um romance satírico do escritor irlandês Jonathan Swift, um clássico da literatura inglesa denominado de "As Viagens de Gulliver"
2-
Lilliput:
É uma ilha do romance As Viagens de Gulliver, localizada no distante Oceano Índico. Nessa ilha o personagem principal
(Guiliver) encontra uma população de pessoas minúsculas (cerca de 15
centímetros de altura), que o tomaram por gigante.
3-
Brobdingnag:
É o segundo destino de Gulliver em sua
época viagem. Após ir embora de Lilliput, embarca em uma nova viagem chegando a
Brobdinag, uma terra dos gigantes, e é aí que Gulliver começa a perceber como
os liliputianos se sentiam em relação a ele.